Giroplastia de Van Nes & Transplante Autólogo de Cartilagem de Crescimento
Albert G. Van Nes, cirurgião holandês, descreveu sua técnica cirúrgica chamada “giroplastia de Van Nes” ou “rotação de Van Nes”, em 1950.
Esta técnica consiste em uma ressecção intercalar e a rotação de 180 graus do membro inferior, de modo que o tornozelo passa a funcionar como uma nova articulação do joelho. A técnica de Van Nes foi inicialmente desenvolvida para tratar casos de sarcoma de Ewing e osteossarcoma, especialmente em crianças, permitindo uma alternativa à amputação total do membro.
A ideia era criar um “joelho biológico” utilizando o próprio tornozelo do paciente, uma vez que as tecnologias protéticas da época não eram avançadas ou acessíveis. A giroplastia de Van Nes permite que o paciente utilize órtese de forma mais eficiente, mantendo uma funcionalidade mais natural e uma melhor qualidade de vida em comparação com a amputação tradicional
Nesta aula, vamos discutir o tratamento dos sarcomas ósseos que afetam as crianças em crescimento, apresentando a técnica de Van Nes e o auto transplante de cartilagem de crescimento.
Na década de 1980, a literatura indicava a amputação dos membros acometidos por sarcomas ósseos em crianças menores de 10 anos de idade. Isso se devia tanto aos recursos cirúrgicos da época quanto aos altos índices de maus resultados com a cirurgia conservadora, em virtude da acentuada discrepância dos membros que ocorreria com o crescimento. Outros dogmas também estabeleciam a ablação nos casos de envolvimento vascular.
Ainda no Congresso Brasileiro de Ortopedia de 1988, realizado em Brasília, esse conceito era consenso. Entretanto, já contestávamos essa premissa, afirmando que o comprometimento vascular poderia ser contornado com a realização de enxertos vasculares, apresentando casos que tratamos com ressecção oncológica e reconstrução com anastomose vascular, como este caso de osteossarcoma envolvendo a artéria e a veia poplítea, que foi ressecado em bloco e reconstruído com enxerto vascular e endoprótese.
Naquela época, a cirurgia ablativa era indicada para lesões tumorais que envolviam o feixe vascular, para aquelas que apresentavam comprometimento dos tecidos moles, para tumores com mais de 12 cm ou com fratura, e também para lesões neoplásicas em crianças menores de 10 anos. Para esses casos, a amputação era uma das alternativas.
Entretanto, em 1992, conhecemos o Professor Capanna no congresso da SBOT, em São Paulo, que nos apresentou a técnica de Van Nes, indicada para esses casos. Essa giroplastia consiste em uma ressecção intercalar, criando uma deformidade de difícil aceitação em nosso meio latino, requerendo consentimento por parte do paciente e familiares, além de apresentar dificuldades na confecção da órtese para o paciente.
Optamos pela giroplastia de Van Nes em dois casos, visto que essa técnica não impediria uma futura conversão para amputação, caso não houvesse sucesso.
No primeiro caso, tratava-se de um osteossarcoma no terço distal da coxa direita, comprometendo o fêmur, os músculos e o feixe vascular da região. A indicação da giroplastia foi executada, realizando-se uma ressecção oncológica intercalar, ao invés de uma amputação total ao nível do terço proximal do fêmur. Optamos por realizar a Giroplastia de Van Nes, que consiste em uma ressecção intercalar dos dois terços distais da coxa e do segmento proximal da perna, com preservação do feixe vascular (artéria e veia) e do nervo ciático. Trata-se de uma ressecção em bloco, incluindo pele, músculos, ossos e tecido subcutâneo da região, com margem oncológica, preservando a irrigação e inervação da extremidade remanescente.
Na Giroplastia de Van Nes, executamos uma rotação de 180° da extremidade inferior do membro operado e calculamos a extensão necessária do segmento da perna operada, de modo que, ao final da maturidade esquelética do paciente, o nível final da articulação do joelho sadio esteja equiparado ao do tornozelo contralateral. Dessa forma, o nível da articulação do joelho sadio ficará simétrico ao do tornozelo do lado operado, que funcionará como uma neo-articulação, proporcionando simetria ao paciente na posição sentado.
A placa de crescimento da tíbia esquerda, que é o lado sadio, tem um potencial de crescimento maior do que a placa distal da tíbia direita, que é a do lado operado. Esse maior potencial de crescimento, somado ao maior tamanho deixado, permitirá alcançar simetria ao final da puberdade. Tivemos dificuldade em confeccionar essa órtese sob medida, mas ela apresentou um bom resultado funcional, com apoio terminal no pé e propriocepção. Entretanto, a aceitação por parte dos familiares foi bastante problemática.
Ainda em 1997, a literatura mundial indicava a amputação como tratamento para tumores do membro inferior em crianças menores de 10 anos de idade, devido à futura discrepância do membro inferior. Chamamos a atenção para o fato de que a placa de crescimento da fíbula fica ao nível da articulação do tornozelo, enquanto a placa de crescimento da tíbia se encontra em um nível superior. Planejamos, assim, uma transferência da fíbula distal para a tíbia após a ressecção do tumor. Vale destacar que a artéria nutrícia da fíbula e sua placa de crescimento entram no terço proximal da fíbula. Portanto, nossa osteotomia fibular deve ser realizada acima dessa entrada. Precisamos também realizar uma janela lateral para o encavilhamento proximal, seguida da criação de uma cavidade no tálus para receber a epífise fibular com sua placa de crescimento.
Vamos realizar uma artrodese entre o tálus e a tíbia remanescente, utilizando a epífise fibular com sua cartilagem epifisária já removida, transladando-a pela membrana interóssea. Dessa forma, executaremos uma transferência da cartilagem de crescimento da fíbula para a tíbia, realizando um autotransplante da placa de crescimento através da membrana interóssea.
Para finalizar a artrodese, fazemos uma cavidade oval no tálus para adaptar a epífise fibular, completando assim a artrodese com a integração da epífise fibular. Finalizamos esta reconstrução fixando com um pino de Steinmann pelo calcâneo. Acomodamos o membro operado na órtese modelada para esta paciente, obtendo uma transferência da placa de crescimento da fíbula para a tíbia, finalizando assim o procedimento.
No primeiro caso, com cinco meses, pudemos observar a neoformação óssea e a transferência da placa fibular para a tíbia. No mapeamento, constatamos que este segmento estava vascularizado, confirmando o sucesso deste autotransplante. Com um ano e cinco meses, pudemos observar a boa integração óssea e o espessamento da nova tíbia com a placa fibular transladada e viável. Após dois anos, a paciente apresentava bom apoio e função, tanto em flexão dos joelhos quanto em carga monopodal.
No segundo caso de autotransplante de cartilagem ao nível do tornozelo, observamos uma lesão de rarefação óssea na metáfise distal da tíbia, com limites imprecisos que ultrapassavam as corticais, lateral, anterior e posterior. A cintilografia apresentava aumento de captação no tornozelo, evidenciado no PET-CT. Nos cortes de ressonância magnética axial e sagital T2 com supressão de gordura, observamos um tumor extra cortical de grande volume, com alto sinal. Confeccionamos um molde gessado inguino-podálico para servir de base para a órtese que foi confeccionada sob medida. A radiografia final confirmou o posicionamento do fio de Kirchner, estabilizando a reconstrução.
Agradeço aos ensinamentos recebidos do Prof. Rodolfo Capanna, desde 1992, e à contínua troca de conhecimentos com o Prof. Eduardo José Ortiz Cruz, de Madri, Espanha.
Realizamos esta técnica de autotransplante em outras crianças, em diferentes ossos, como úmero e tíbia, que publicamos na revista SpringerPlus.
Link: https://springerplus.springeropen.com/articles/10.1186/s40064-016-2042-7
Concluímos, com nossa experiência que “o transplante autólogo de cartilagem de crescimento é uma boa alternativa para as reconstruções biológicas em crianças.”